Texto de Nuno Saraiva hoje publicado no "Diário de Notícias".
"O negro da indumentária e o olhar compungido, somados às palavras medidas no arranque da comunicação, auguravam o murro no estômago que o primeiro-ministro, olhos nos olhos, se preparava para dar ao País. Eliminar os subsídios de férias e Natal aos funcionários públicos e pensionistas, novo aumento de impostos por via das alterações ao IVA e ao IRS e outras malfeitorias hão-de ficar gravadas na história como parte do guião de um dos dias mais lúgubres do Portugal democrático.
Todos sabemos, e não é de agora, que o País está ligado à máquina há muito tempo. Nunca como no último ano e meio, o maior partido da oposição - agora no Governo -, co-autor do Orçamento em vigor, dispôs de tanta informação sobre as contas públicas nacionais que, por via da negociação com o programa da troika, foram auditadas como nunca antes tinha acontecido. Daí que invocar desconhecimento sobre a realidade e justificar as inverdades ditas em campanha eleitoral com um "desvio colossal" que surpreendeu as piores previsões é atirar areia para os olhos. A verdade verdadinha é que, à hora do telejornal de quinta-feira, Pedro Passos Coelhos rasgou o que ainda restava do contrato de confiança que estabeleceu com os eleitores na noite das últimas eleições legislativas.
Sejamos pois claros. Não há, ninguém duvida, alternativa à austeridade e ao cumprimento rigoroso dos compromissos contraídos com os nossos credores internacionais. Mas haveria, seguramente, forma de não prosseguir o caminho trilhado por outros de enganar, mais uma vez, os portugueses. Conhecendo a realidade das contas públicas - e, excepção feita ao buraco da Madeira, não vale a pena negá-lo -, Pedro Passos Coelho não podia ter-se comprometido com aquilo que sabia não poder (ou não querer) cumprir. Ou seja, fazer da taxa social única principal bandeira de campanha, devidamente quantificada, e agora deixá-la cair é enganar as pessoas. Garantir que, se alguma vez tiver de aumentar impostos, só o fazer naqueles que incidem sobre o consumo e não sobre o trabalho e, na primeira oportunidade, taxar o subsídio de Natal é enganar as pessoas. Afirmar que é "um disparate" acabar com o 13.º e 14.º meses, e agora confiscar estes rendimentos aos funcionários públicos e pensionistas, não tem outro nome: é enganar as pessoas. E por aí fora.
O que se exigia pois ao primeiro-ministro é que, antes de eleito, tivesse sido tão rigoroso com a verdade como exigia aos seus adversários directos que o fossem e que tantas vezes o ignoraram. Se assim tivesse sido, ontem não teria sido obrigado a reconhecer na Assembleia da República que, de facto, as medidas agora anunciadas não correspondem ao Programa Eleitoral do PSD.
E já que as promessas eleitorais estavam rasgadas, e contra esse facto nada há a fazer, a questão que se coloca é porque é que, mal por mal, não é o Governo socialmente justo na distribuição dos brutais sacrifícios que agora impõe? Porque é que, em vez de sobrecarregar como de costume os funcionários públicos e os pensionistas, não se recorreu à fórmula de tributação de todos os contribuintes, cativando 50% dos subsídios como acontecerá este ano com o de Natal, seguindo uma elementar regra de equidade?
A resposta é simples. Como já todos percebemos, as chamadas "gorduras do Estado" só existem na boca dos candidatos ao poder. Uma vez lá chegados, apercebem-se de que elas ou não existem ou são difíceis (para não dizer impossíveis) de eliminar. Pressionado pela ausência de cortes na despesa, o Governo optou por a reduzir através do congelamento de salários e pensões. Se optasse pela via socialmente mais justa, seria obviamente acusado de, mais uma vez, estar a seguir o caminho fácil do aumento da receita fiscal. Mas é a vida. E assim não há "limites à ética social" que resistam. "
sábado, 15 de outubro de 2011
Rasgar o contrato de confiança
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