Há uma síndrome
de read my lips que infeta a governação neoliberal na Europa. O uso da
mentira pelos Governos europeus e pelos aspirantes a substituí-los
cumprindo o cânone deixou de ser um recurso de circunstância e tornou-se
uma condição de fundo. A mentira é hoje um ingrediente essencial da
governação das democracias limitadas em que vivemos. Na União Europeia
do nosso tempo, os programas que nos governam de facto não vão mais a
votos - fossem e seriam cilindrados. As troikas não são eleitas - e, no
entanto, são elas que nos governam. Ao contrário, os Governos que vão a
votos não nos governam e os programas que submetem ao juízo do
eleitorado têm pouco que ver com as políticas que, uma vez eleitos, põem
em prática. Como Bush pai na Convenção Republicana de 1988 que o nomeou
para candidato à Casa Branca, quem busca a eleição proclama "leiam os
meus lábios: não haverá mais impostos". Sabemos todos - a começar pelos
próprios - o que isso quer dizer sobre o dia seguinte.
Há quinze
dias, Passos Coelho assegurou ao País que, para cumprir a meta de défice
de 2,5% em 2015, o Governo não adotaria "medidas que incidam em matéria
de impostos, salários ou pensões". O resultado da jura foi subida do
IVA, subida da parte da taxa social única paga pelos trabalhadores e
mudança de nome da contribuição especial de solidariedade. Da "enorme
subida de impostos" de Gaspar passámos para o "aumento mais pequeno
possível" de Albuquerque. Só que este se soma àquela. E, cinismo máximo,
o Governo promete começar a repor os cortes de salários e pensões em
2015 com um horizonte de cinco anos. Mas não diz que só tem previsão
concreta para 2015 (e mesmo essa com efeitos anulados pela subida de
impostos).
O próximo episódio, tudo o indica, será a rábula da
saída limpa. A barragem comunicacional de moldagem da verdade está
preparada. Virá o discurso do sucesso. Virá o discurso da prova de
confiança dos credores na correção do caminho percorrido. Virá até o
elogio à heroicidade do povo - "o melhor povo do mundo", como dizia
Gaspar - pela demonstração de ter compreendido que a autoflagelação dá
saúde e faz crescer.
Ficarão por dizer duas coisas. A primeira é
que, a confirmar-se a saída limpa, ela fica a dever-se à relutância da
União Europeia em passar a imagem de insucesso do seu programa para
Portugal e à recusa dos nossos parceiros (?) comunitários em nos
garantir crédito se os mercados espirrarem. Não é por não precisarmos de
almofada contra as turbulências do mercado que não teremos programa
cautelar, é porque os ricos desta Europa sabem que o mínimo tremelique
dos mercados é um tremor de terra para uma economia com uma dívida que
em vez de diminuir cresceu e por isso não estão para arcar com o risco
de nos servirem de avalistas. Ou, para estarem, exigem--nos coiro e
cabelo. Foi assim com a Irlanda e não foi outra a razão da saída à
irlandesa.
A segunda coisa que não nos será dita é que o suposto
sucesso da saída limpa é apenas o pórtico para mais e mais austeridade.
Ou seja, o que não nos será lembrado é que não é preciso programa
cautelar para nos serem impostos mais pacotes de austeridade. Para que
isso aconteça nos próximos trinta anos, basta-nos o cumprimento do
Tratado Orçamental.
No meio das juras de europeísmo convicto, a
maioria governamental e os demais europeístas convictos encarregar-se-ão
de pintar de sucesso esse caminho de décadas de austeridade e de
crescimento sempre medíocre da nossa economia. Em cada campanha
eleitoral, na exata medida em que se avizinhem mais "medidas" - disfarce
retórico de mais austeridade -, hão de repetir a ladainha do sucesso,
da retoma à vista, do resgate da nossa independência, blá-blá-blá. E nós
perceberemos bem o seu discurso: read my lips.
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