Texto de José Vitor Malheiros hoje publicado no "Publico".
Os grandes evasores fiscais são as grandes empresas e não os pequenos comerciantes.
A rifa do fisco que acaba de ser anunciada pelo secretário de Estado
dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, onde são sorteados carros topo de
gama entre os consumidores que incluam os seus números de identificação
fiscal (NIF) nos recibos das suas compras, é mais um exemplo perfeito da
forma como funciona o Governo PSD/CDS: qualquer truque é aceitável
desde que proteja os mais ricos, permita um golpe de propaganda
populista e distraia as pessoas dos seus verdadeiros problemas,
acenando-lhes com benefícios futuros que nunca vão conquistar.
É evidente que o
preenchimento de milhões de recibos com o número de identificação fiscal
no momento do pagamento constitui uma perda de tempo considerável para
comerciantes e clientes. A Associação da Hotelaria, Restauração e
Similares de Portugal (AHRESP) protestou aliás contra a medida, tendo
estimado que ela represente em 2014 uma perda de 130 milhões de horas de
trabalho para os seus associados. Mas o Governo não se incomodou com
essa circunstância porque os inconvenientes e as perdas resultantes da
medida recaem sobre a sociedade e as vantagens do golpe propagandístico
serão colhidas pelos partidos no Governo.
Quais são as vantagens?
Uma falsa aparência de combate à evasão fiscal e uma imagem
moralizadora. Porquê falsa? Porque os grandes evasores fiscais são as
grandes empresas e não os pequenos comerciantes, como toda a gente sabe,
como os especialistas não se cansam de alertar e como as organizações
internacionais que combatem a corrupção e a evasão fiscal denunciam. E
porque os grandes responsáveis pela evasão fiscal são precisamente os
governos. De que forma? Através dos tratamentos de excepção que concedem
às grandes empresas e aos grupos financeiros em particular, com o
argumento de que é necessário ser “fiscalmente competitivo” para atrair
investimentos e para que as empresas possam “criar empregos”. Com a
autorização de paraísos fiscais como o offshore da Madeira e
todos os outros que existem na União Europeia e fora dela e fechando os
olhos às falsas “deslocações” de empresas para a Holanda e para outras
plataformas de lavagem de dinheiro.
Mas é mais útil criar a ideia
de que os comerciantes são os responsáveis pela fuga ao fisco, que é
principalmente através do IVA que isso acontece, que os consumidores
devem agir como fiscais das finanças e que o Governo é um campeão da
luta contra a evasão fiscal.
A medida é moralmente retorcida por
outras razões. Seria lógico e louvável que o Estado (que é uma coisa
diferente do Governo, ainda que este, ilegitimamente, se apodere do
património do Estado como se fosse seu) lançasse uma campanha promovendo
a moralidade do pagamento de impostos, que são a base do financiamento
dos serviços públicos, e incentivasse os cidadãos a cumprir as suas
obrigações fiscais. Mas é impossível fazer isso quando o Governo usa o
Estado para roubar os cidadãos e os submete a uma carga fiscal imoral
para arrebanhar dinheiro para pagar aos bancos uma dívida insustentável
que deveria ter renegociado. De facto, o Governo não pode usar um
discurso moral sem que o país inteiro se escangalhe a rir na sua cara e,
por isso, a única forma que encontrou para dizer aos cidadãos que devem
pagar impostos foi dizer-lhes que com isso podem ganhar um carro. É a
mais venal das razões, mas essa é a única moralidade que os membros do
Governo conhecem.
Há ainda outra razão imoral escondida: o bando
que ocupa o Governo tem uma dificuldade de raiz ideológica em construir
um discurso em torno de conceitos como comunidade, bem comum, serviços
públicos ou património público e, por isso, prefere incentivar o
pagamento dos impostos através da possibilidade de um benefício pessoal.
Benefício pessoal é algo que eles percebem.
E porquê o carro
“topo de gama”? Porque não simplesmente um carro ou dez carros? Porquê
este conceito antiecológico que até fez a Quercus dar prova de vida e
vir a terreiro contestar (e propor um carro eléctrico)? Porquê? Porque
estamos a lidar com o PSD e o CDS, meus senhores, e não se pode pedir a
uma rã que cante Schubert.
Isto do Governo tem-se vindo a degradar
nos últimos anos e hoje temos no Governo a maltosa dos carros “topo de
gama”, o novo-riquismo em todo o seu esplendor, o novo-raquitismo
mental, analfabetos com botões de punho a condizer, monogramados. Para
um jota não há maior glória que parecer um catálogo “topo de gama” e
aparecer em revistas. Para um jota isso é a felicidade. Porquê a rifa do
carro “topo de gama”? Porque os jotas pensam que qualquer um pode ser
comprado com um carro “topo de gama” porque qualquer um deles se
venderia exactamente pelo mesmo preço. O carrito “topo de gama” é o alfa
e o ómega da carreira de um jota que se preze, é o simbolo de quem
triunfou na vida, de quem é “alguém”, caraças! Pai, já sou ministro!
Pai, tenho um carro “topo de gama”! Como os relógios e as marcas das
camisas e os óculos “topo de gama” e tudo “topo de gama”. Chegámos ao
cume da governação rasca. Saiu-nos na rifa mesmo sem dar o NIF. É
preciso ter azar.
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