domingo, 30 de março de 2014
A pobreza e os pobres de espírito
1-Nesta semana tivemos notícias do chamado programa de ajustamento. Há quase dois milhões de portugueses a viver com menos de 409 euros por mês, um terço das famílias não pode aquecer satisfatoriamente a sua residência e praticamente metade dos nossos concidadãos não pode acudir a uma despesa de 400 euros sem recorrer a crédito. Ser velho ou ter filhos é uma porta aberta para a pobreza (é bom que as pessoas do Governo percebam que alguém ainda perde a cabeça se se persistir em falar que é preciso ter mais filhos), e vale a pena lembrar que mais de metade das pessoas em situação de desemprego não recebem subsídio.
Os números divulgados pelo INE não deixam margem para dúvida: há cada vez mais pobres e os pobres estão cada vez mais pobres. A isto deve ser somado o aumento da desigualdade, que já sendo das maiores da Europa ainda cresceu mais. É a nova comunidade que estamos a construir, é o caminhar a passos largos para um passado que pensávamos não poder regressar.
Claro que esta queda no abismo da pobreza não surpreenderá ninguém. Muito menos os agentes externos e os fundamentalistas internos da execução da política suicida que vem sendo posta em prática. É este o plano, é esta a visão: criar um exército de pobres disposto a trabalhar por uma malga de sopa e esvaziar o País duns milhões de almas para que haja, digamos assim, mais espaço. É a já nossa conhecida estratégia de empobrecimento. Como acredito que ainda resta um mínimo de preocupação pelos outros cidadãos, um mínimo de decência, um mínimo de noção de bem comum, um mínimo de caridade, imagino que os estrategos desta loucura pensem que esta miséria provoque no final um milagre - um prodígio como o nascimento de árvores das patacas ou o súbito jorrar de petróleo no Bombarral. Tudo isto seria assim uma espécie de sacrifício para expiar pecados e depois viria, por obra e graça do Deus Desconhecido, a bonança. Francamente, já não se conseguem encontrar explicações racionais para a persistência num caminho que está a conduzir a estes resultados.
Mas, no mesmo dia em que foram divulgados mais números da tragédia em curso, Passos Coelho, reagindo pela enésima vez ao Manifesto dos 74 e não prescindindo do acinte com que tem brindado os subscritores, afirmou que este mostrava uma conceção infantil da Europa. Os assinantes do manifesto "estão a falar de uma Europa que não existe, nem existirá e ainda bem, porque ninguém aceitaria uma Europa em que uns poupam para que outros possam gastar". A colagem às teses que dominam a ausência de pensamento europeu é evidente. E é bom que fique claro, não há ponta de ideologia nelas. Passos Coelho está, na prática, a alinhar num conjunto de preconceitos quase racistas, repugnantes e mentirosos, e em assunções pretensamente morais. Não em nenhuma escolha ideológica.
Fica mais uma vez claro que o primeiro-ministro de Portugal pensa que os seus concidadãos são uns esbanjadores, uma malta que andou, e anda, para aí a gastar à tripa-forra. Os povos do Norte, claro está, poupados e sérios, estão fartos da nossa desbunda.
Não ignorando, Passos Coelho, os números da pobreza, do desemprego, da emigração no nosso país, parece perfeitamente razoável chegar à conclusão de que acha que ainda não são suficientes. Não pode ser mesmo doutro modo. E, assim sendo, resta a pergunta: quantos mais pobres e desempregados serão necessários para que sejamos considerados uns probos e dedicados cidadãos, senhor primeiro-ministro?
2-Nesta semana ficou claro que o ministro Maduro não faz ideia do que está a fazer no Governo, que Marques Guedes acha os jornalistas uns manipuladores, que o ministro Mota Soares não é tido nem achado em questões do seu ministério e é substituído por um secretário de Estado dum outro em que Maria Luís Albuquerque manda e acha que não tem de dar confiança a ninguém. O primeiro-ministro ainda não percebeu bem as funções que exerce e pensa que os membros do Governo devem contribuir para um debate sereno... aquele cavalheiro que em 2011 dizia que "a única coisa que aproveito para enfatizar é que todos aqueles que produziram os seus descontos e que têm hoje direito às suas reformas e às suas pensões as deverão manter no futuro, sob pena de o Estado se apropriar daquilo que não é seu".
Entretanto, vêm para aí mais cortes nas pensões (e salários) e foram anunciados de forma a instalar o pânico e a gerar incerteza numa parte já muito fragilizada da população. O costume, portanto.
A novidade veio de Portas. Segundo o vice-primeiro-ministro, cerca de 85 mil pessoas, nos últimos dois anos, deixaram de ter direito ao Rendimento Social de Inserção porque todas elas tinham mais de 100 mil euros na conta bancária. Das duas uma: ou, afinal, havia para aí muito dinheiro sem que ninguém soubesse, ou Paulo Portas mente despudoradamente, miseravelmente, irrevogavelmente, mesmo. É aguardar.
sábado, 29 de março de 2014
Pensões: verdades, mentiras e verbos de encher
Texto de Eduardo Oliveira Silva hoje publicado no jornal "i".
Partindo deste caso, observa- -se, por exemplo, a diferença em relação a outros países, como a falida Espanha, onde há dias os pensionistas receberam uma carta a anunciar- -lhes um pequeno aumento e a garantir-lhes que as pensões, tal como estão, são intocáveis. O mesmo sucede na Alemanha, onde uma reforma tem um valor sagrado, igual ao da propriedade.
Por cá, procura-se furiosamente tornar os cortes definitivos, como todos adivinhávamos apesar das juras em contrário. O processo é decidido no Ministério das Finanças, sendo o da Segurança Social remetido a um papel decorativo, enquanto os membros do grupo de trabalho inventado para estudar a reforma das pensões são transformados em verbos de encher que estranhamente não se demitem. A situação é tão surrealista que não há nota de que o grupo se reúna, quanto mais de que tenha sugerido soluções. Uma vergonha a acrescentar à ópera bufa proporcionada pelo secretário de Estado.
As questões relacionadas com as reformas não podem continuar a ser tratadas de forma precipitada e agarotada, como se tem visto através de medidas tomadas à la minuta, caindo os sacrifícios sempre em cima dos mesmos, nomeadamente dos pensionistas, como reconheceu ontem Cavaco Silva.
Em primeiro lugar, o sistema que existe é viável e cobre as pensões de quem efectivamente descontou. O que não cobre é o pagamento anos a fio a quem nunca teve uma vida contributiva regular, pelo que esse pagamento não deve ir da Segurança Social mas do Orçamento do Estado. Em segundo lugar, os pensionistas e reformados são um importante grupo de consumidores, quer ganhem muito quer pouco.
Isto porque contam com uma determinada quantia mensal e gerem-na em função dessa expectativa, só poupando se realmente sobrar qualquer coisa, o que é uma raridade. Daí que precisem de uma protecção suplementar, desde logo por uma questão de respeito pelos mais velhos, como mandam as sociedades civilizadas, e depois porque a estabilidade do rendimento é indispensável para eles e para o mercado de consumo. Atirar ainda mais incertezas para cima dos reformados parece um esquema de sadismo social, perturba a economia e afecta um grupo que funciona como esteio da sociedade, quando ajuda filhos e netos em dificuldades.
O que se deve estudar hoje não é a forma de cortar mais ou para sempre, mas como ir buscar receita para a Segurança Social onde haja dinheiro. O sistema foi construído, primeiro, com base num esquema de aforro, e depois, em data incerta, passou a dizer-se que os trabalhadores de hoje pagam as actuais reformas, ajustando-se as regras quase anualmente. Ora numa altura em que praticamente nada é feito com mão- -de-obra intensiva e em que há muito desemprego, verifica-se um desequilíbrio contributivo que não advém só da demografia. As soluções passam por uma reforma global e europeia que encontre recursos nos negócios financeiros especulativos que geram dinheiro sobre dinheiro sem repartirem socialmente os lucros. Mas essa é uma solução da qual ninguém fala e não custa perceber porquê.
Sem perdão
Texto de Manuel Nuno Saraiva hoje publicado no Diário de Noticias
Esta semana,
como noutras destes mais de mil dias de governação, o Governo saiu ao
caminho dos mais velhos e meteu-lhes medo. Quinta-feira as manchetes,
que citavam "fonte oficial", gritavam que a ministra das Finanças já
tinha cortes definitivos para as pensões, que até aqui eram provisórios.
Ao
final da manhã, a minha avó Luísa, reformada de 95 anos e de quem já
aqui falei, ligou-me aflita depois de dividir o pânico com as amigas do
centro de dia. "Filho, que mais é que estes bandidos me querem tirar?",
perguntou-me com a voz trémula de quem não consegue parar de fazer novas
contas à vida. É a água e a luz, o gás e a comida, os remédios e a
ração para os pássaros companheiros das tardes de fim de semana, a renda
da casa e mais as outras despesas imprevistas próprias de quem chega a
esta idade. Desde então, foram duas noites, como muitas outras destes
mais de mil dias de governação, sem pregar olho.
Pouco me
importa se não há ainda decisão, se foi erro, calhandrice ou
incompetência. Não me interessa se é ruído ou especulação. Não quero
saber se Passos Coelho sabia ou se Poiares Maduro foi ignorado. Sei que
isto, como tantas outras coisas nestes mais de mil dias de governação,
não se faz.
A verdade é que, em matéria de choque e pavor, o
Governo tem o cadastro cheio. Fez soar o alarme com a chamada TSU dos
idosos. Causou o pânico com a pretensão de cortar a eito, em função da
idade, as pensões dos funcionários públicos, pretendendo que os
nonagenários sofressem um esbulho de 10% na reforma. Lançou o terror com
o primeiro anúncio de corte nas pensões de viuvez. E tudo com a mesma
tática ou estratégia: deixar escapar à bruta uma má notícia para testar
reações a ver se pega. E depois, mais adiante, vir compungido anunciar
que nunca foi bem assim, que houve manipulação da informação, que o
Governo é socialmente sensível e que, por isso, protege os mais frágeis
de entre os mais fracos.
Isto não é jogo limpo. Isto é terrorismo social.
Por
mais proclamações inflamadas que façam, Pedro e Paulo escrevem
epístolas cada vez mais vazias de social-democracia ou de democracia
cristã. A matriz doutrinária destas duas correntes é humanista e
socialmente preocupada. E determina que com a vida das pessoas não se
brinca, muito menos tratando-se de idosos.
Aos mais velhos devemos
respeito porque sim. Solidariedade porque sim. Apoio porque sim.
Assistência porque sim. Não por caridade, apenas porque sim. E essa
dívida, em parte ou no todo, não pode ser reestruturada nem perdoada.
O
que o lamentável episódio desta semana revela é que o programa de
empobrecimento ainda não está concluído, por mais que o Presidente da
República reabilite a tese - foi o que ontem fez quando apelou a que "se
for necessário reduzir o rendimento disponível de alguém no futuro, tem
que ser àqueles que têm elevados rendimentos e que, até este momento,
não foram seriamente prejudicados no seu bem-estar" - de que há limites
para os sacrifícios que se podem pedir ao comum dos cidadãos.
E o
que também ficou demonstrado é que existe, de facto, uma nova agenda de
cortes que a maioria queria escondida. Mas apenas até às próximas
eleições europeias.
Não sei, até porque não acredito nessas
coisas, se o Governo vai parar ao inferno. Tenho no entanto a certeza
que o purgatório a que os velhos estão a ser sujeitos, porque desumano e
desleal, não tem perdão.
sexta-feira, 28 de março de 2014
Promessas cumpridas
Texto de Manuel José Manuel Pureza hoje publicado no Diário de Noticias
O descrédito
social da política contemporânea passa, e muito, pela noção cada vez
mais disseminada de que só as promessas de regressão são sérias e de que
todas as promessas de transformação que acrescentam dignidade e
direitos às nossas vidas são demagogia irresponsável. Quando rigor só
pode rimar com sofrimento e melhoria de condições passou a ser uma
questão de fé e não uma possibilidade efetiva, a política só pode ser
repudiada.
O Governo prometeu empenhar-se em fazer o País "sair
desta situação, empobrecendo". Cumpriu uma parte: a do empobrecimento.
Os dados esta semana publicados pelo INE relativos a 2012 mos- tram, de
facto, como o Governo honrou a promessa de empobrecer a grande maioria
dos portugueses. Há neste relatório duas informações essenciais sobre o
que é o País depois do choque de empobrecimento prometido e cumprido.
A
primeira é a de que a austeridade agravou e espalhou a pobreza. Um
milhão e cem mil pessoas - mais 200 mil do que em 2010 - vivem em
condição de pobreza severa (ou seja, não conseguem satisfazer as suas
necessidades mais elementares). Um em cada quatro portugueses é pobre -
uma subida de 25% em apenas quatro anos. A taxa de risco de pobreza -
correspondente a 60% do rendimento mediano, o qual desceu
significativamente descendo por isso a fasquia de contagem da pobreza -
subiu mesmo assim, dramaticamente, de 17,9% em 2009 para 24,7% em 2012.
Sabemos bem que por trás destes números estão vidas concretas de
indizível sofrimento e indignidade: ter de escolher entre os
medicamentos que se tomam e os que não se podem comprar, não ter
dinheiro para manter a casa minimamente aquecida, não ter meios para
comprar uma peça de roupa, não ter dinheiro para que um filho possa
estudar, etc., etc. Quarenta anos depois do 25 de Abril, este país que o
INE faz ver ao espelho volta a ver as mesmíssimas imagens que a
democracia primeiro e a Europa depois fizeram crer que estariam banidas
para sempre.
Mas os números do INE revelam-nos uma segunda imagem
do País sob as políticas de austeridade. A diferença entre o rendimento
dos 10% mais ricos e dos 10% mais pobres passou de 9,2 vezes em 2009
para 10,7 vezes em 2012. Os números são como o algodão: não mentem. E
neles vai clara a demonstração de que houve uma parte do País a quem a
promessa governamental de empobrecimento não se aplicou de todo. Há
notoriamente mais pobres em Portugal, há uma mancha social muito mais
ampla afundada na pobreza quotidiana e na falta de horizontes de saída
dela. Mas o alastramento e o agravamento da pobreza da grande maioria
reverteram a favor de uns poucos muito ricos, sempre incólumes aos
sacrifícios.
Da grande promessa programática de 2011 - empobrecer o
País para o "tirar desta situação" -, o Governo cumpriu a parte mais
fácil: empobrecer os pobres e trazer para a pobreza os remediados. Aos
ricos ajudou a que ficassem mais ricos. E, mais grave que tudo, sem que
no fim se tire o País da situação que justificou isto tudo -, a dívida
agigantou--se e a capacidade de a pagar diminui na mesma proporção. A
resposta do Governo a este diagnóstico do INE será a confirmação, já
anunciada, da natureza permanente dos cortes nas pensões e reformas. Ou
seja, à vulnerabilidade da pobreza o Governo responde com a eternização
dessa vulnerabilidade nos segmentos sociais mais frágeis.
É séria
uma coisa assim? É realista? É razoável? Ou realista, razoável e sério é
antes ouvir o clamor dos pobres e centrar toda a política na criação de
um horizonte de mudança que assuma o quotidiano destas tantas centenas
de milhares de pessoas como a única prioridade?
domingo, 9 de março de 2014
O bafo do Minotauro
Texto de Pedro Marques Lopes hoje publicado no "Diário de Noticias".
sábado, 1 de março de 2014
Alguém está muito melhor
Texto de Carvalho da Silva hoje publicado no "Jornal de Noticias"
Parte significativa dos portugueses está tão manietada nas suas vidas, incapacitada na resposta aos problemas do dia a dia, que anda a fugir da vida, sendo tentada a acolher uma ilusão ou a dar crédito a um milagre como formas de abrir perspetivas de futuro.
O Partido Socialista, que no quadro político-partidário existente é, no senso comum, a força política que mais se afigura como alternativa, está hoje rendido ao domínio do poder económico e financeiro e a dimensões "necessárias" da austeridade, mesmo que uma parte dos seus quadros e bases sinta que essa cedência é desastrosa.
Neste cenário, o Governo e as forças políticas e sociais que o apoiam têm o caminho aberto para ampliar a venda de ilusões e empurrar os problemas com a barriga. Entretanto as faturas a pagar no futuro vão aumentando!
Num exercício de criatividade manipuladora, Luís Montenegro disse, no contexto do recente congresso do PSD, que "A vida das pessoas não está melhor, mas não tenho dúvidas de que a vida do país está muito melhor". Esta afirmação, tomada à letra, coloca uma irracional dicotomia entre condições das pessoas e condições do país. Mas merece ser analisada em duas vertentes.
Primeira, de facto há quem vá ficando com uma vida bem melhor ao lado do aumento generalizado do sofrimento do povo: os grandes capitalistas transformaram riqueza virtual em riqueza efetiva; acionistas da banca, e não só, ganharam com os roubos e a especulação que gerou a crise e continuam a ganhar com a sua gestão; os empresários poderosos deixaram de ter qualquer risco uma vez que o Estado (o Governo) tem agora por missão assegurar-lhes sempre lucros (veja-se os negócios das PPP), à custa dos impostos e sacrifícios dos cidadãos; apenas no espaço de um ano o número de multimilionários e as suas fortunas cresceram 11%; os sistemas de saúde, de ensino, de proteção social e os recursos do país estão agora mais disponíveis para serem explorados pelos capitalistas nacionais e estrangeiros em seu favor. Certamente são estes interesses que os Montenegro consideram como país.
Segunda, se tomarmos o PIB como uma medida do estado do país, o país pode parecer melhor quando o PIB cresce um pouco, como terá crescido nos dois últimos trimestres, mas a situação dos portugueses continuar a piorar. Isso acontece porque são transferidos para o exterior recursos sob a forma de juros e outros rendimentos de capital. É esta a perspetiva de futuro próximo anunciada pelo Governo e pela troika. Mesmo que "o país melhore" - o PIB deixe de cair - os portugueses vão continuar pior. É a consequência de uma dívida insustentável, que devia ser reestruturada, mas que jamais será com este Governo ao serviço dos credores.
A austeridade mata mas, dentro do quadro atualmente vigente no país e na UE, a morte lenta aparece como inevitável. Como a morte certa não é algo que alguém na posse do seu perfeito juízo possa desejar, é preciso alterar o quadro político existente no país e na UE. Isso exige muita luta, muita vontade, muita persistência. São precisas ruturas que pressupõem escolhas difíceis dos portugueses. Enquanto não o fizermos, alguns ficarão sempre melhor e o povo cada vez pior.