Texto de Nuno Saraiva hoje publicado no "Diário de Noticias"
Esta semana, os
juízes do Tribunal Constitucional passaram, na perspetiva do Governo e
do primeiro-ministro, de bestas a bestiais. De espaço onde impera a
falta de senso, o Palácio Ratton transformou-se agora numa ode à
razoabilidade. E tudo porque, desta vez, a douta decisão de validar as
candidaturas dos chamados "dinossauros autárquicos" veio ao encontro dos
desejos partidários mais íntimos do dr. Passos.
Tanta
incoerência, graças a Deus. Definitivamente, Pedro Passos Coelho é,
assim, uma espécie de serial killer constitucional. Na Universidade de
Verão da JSD, o primeiro-ministro mostrou, mais uma vez, o desprezo que
sente pela Constituição da República e pelo Tribunal Constitucional.
Numa
extraordinária exibição de populismo e demagogia, temperada com
ignorância q. b., Passos Coelho questionou, sob o aplauso frenético da
assistência acrítica e submissa: "Já alguém se lembrou de perguntar aos
900 mil desempregados de que lhes valeu a Constituição até hoje?" Não
vale sequer a pena enfatizar a falta de decência de - na boca do
primeiro-ministro, e apesar de as estatísticas o demonstrarem há tempo
demasiado, para sustentar o ataque a um acórdão do Constitucional - se
manipularem os números do desemprego de acordo com as conveniências. E
também não está em causa a legitimidade de contestar e discutir decisões
judiciais. Em democracia, como é óbvio, não há vacas sagradas e tudo é
questionável, a começar pelo próprio regime.
Do que se trata é de
saber se é aceitável que um primeiro-ministro, seja ele qual for,
insulte de forma grosseira a inteligência dos portugueses.
Só por
ignorância ou má-fé é que alguém pode questionar o papel da
Constituição no que à proteção social diz respeito. Por exemplo, o
número 1 alínea e) do artigo 59.º diz que "todos os trabalhadores, sem
distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à assistência
material, quando involuntariamente se encontrem em situação de
desemprego". E, mais adiante, o número 3 do artigo 63.º determina que "o
sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice,
invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as
outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de
capacidade para o trabalho". Isto é, queira ou não queira o dr. Passos
Coelho, a verdade é esta. Os desempregados - infelizmente não são todos -
devem à Constituição da República a consagração do pagamento de
subsídio de desemprego.
Mas do que se trata também é de avaliar
se é tolerável que um primeiro-ministro proponha reiteradamente medidas
que vão contra o texto constitucional. E que, à viva força, queira
forçar um tribunal a quem é solicitado que se pronuncie sobre a
conformidade das leis - sim, o Tribunal Constitucional não age por mote
próprio - a dizer aquilo que mais lhe convém. É, aliás, de uma
ingratidão sem nome acusar de falta de "bom senso" e de "ter protegido
mais os direitos adquiridos do que as gerações do futuro", um tribunal
que, por exemplo, permitiu, em nome do estado de emergência financeira, o
corte de salários aos funcionários públicos, a não devolução imediata
de subsídios de férias e de Natal suspensos em 2012 ou a cobrança de uma
contribuição extraordinária de solidariedade.
Mas importa reter
também a afirmação de que o problema não é da Constituição mas da
interpretação que os juízes fazem dela. Parece-me claro que há, de
facto, um problema, mas com a interpretação que o primeiro-ministro faz
das palavras dos juízes. O que diz o acórdão não é que os funcionários
públicos não podem ser despedidos. O que é afirmado é que pode haver
despedimentos, desde que as condições sejam objetivas e controláveis.
Dito
isto, parece evidente que quem padece de falta de bom senso é Pedro
Passos Coelho quando, no mesmo discurso, decide desrespeitar o Tribunal
Constitucional e também Cavaco Silva, que, convém não esquecer, foi quem
manifestou fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade da lei de
requalificação dos funcionários públicos e, por isso, pediu a
intervenção do Palácio Ratton.
Tivéssemos nós um Presidente da
República que não fosse o "pai" deste Governo e já o primeiro-ministro
tinha sido chamado a Belém para se retratar dos insultos proferidos
contra o Chefe do Estado e o Tribunal Constitucional. Mas não temos, e é
uma pena.
sábado, 7 de setembro de 2013
Ignorância e falta de senso
Etiquetas:
passos coelho
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário