Texto de Pedro Almeida Cabral hoje publicado na edição online do "Expresso".
Foram precisos dois anos, quatro meses e nove dias para
haver um documento estratégico sobre o que o Governo quer fazer para
algo tão fundamental como governar. Afinal, o Governo tinha toda a razão
quando dizia que a produtividade dos trabalhadores portugueses tinha
que aumentar. E, para provar a sua perspectiva, nada melhor do que dar o
exemplo e demorar 862 dias para dizer o que quer fazer com o país. O habitual estado de graça do início dos Governos foi substituído por um estado de estudo que pode chegar a quase dois anos meio. Assim se combate o estigma que não pensamos antes de agir e que somos todos desenrascanço.
Após tanto tempo de espera, o guião da reforma do
Estado aí está. Em 112 páginas e em enorme fonte de letra. Certamente
para que não haja dificuldades na leitura de nenhuma camada da
população. O guião começa por enquadrar e por dar conta do que é que o
Governo anda a fazer. Não fosse alguém andar distraído. Assim se pode
ficar a saber da requalificação para o despedimento dos funcionários
públicos ou das privatizações da ANA e da EDP. E desta maneira se queimam, perdão, se gastam 46 páginas.
Portanto, o verdadeiro guião só tem 66 páginas. Certamente para que
ninguém o vá ler muito afoitamente à espera de encontrar tudo no
princípio. Há que moderar expectativas.
O guião propriamente dito é, sobretudo, um conjunto
de medidas avulsas, a maior parte não concretizadas, não fundamentadas e
não calendarizadas. Mas o mais surpreendente é que nada, mas mesmo nada, está quantificado no que à redução de despesa diz respeito. Não há uma única medida em que se tenha avaliado ou sequer estimado o seu custo e o seu benefício. Tanto
discurso, comentário e conversa sobre a reforma do Estado que nos
salvaria com majestosas poupanças e afinal ninguém fez contas. Mais.
Tendo em conta que a ideia da reforma do Estado nasceu devido às
supostas gorduras de um Estado obeso, nem a extinção do mais ínfimo
organismo público é sugerida.
O melhor do guião é quando reconhece a sua natureza inútil. E é logo na página 46 quando refere que é necessário "fazer uma avaliação custo-benefício dos organismos e entidades que possam ser extintos ou melhor enquadrados". 862 dias de governação não chegaram para perceber o que não serve para nada. Isto só é compreensível se durante este tempo todo os governantes não falaram com os serviços, isto é, não governaram.
Mas há muito mais. Falar novamente em agregar
municípios quando o Governo já perdeu a oportunidade de o fazer (p. 51).
Concluir, publicar e pôr em discussão um estudo sobre serviços e
equipamentos do Estado que não se sabe bem o que é nem quando estará
pronto (p. 52). Definir um número máximo de processos para cada juiz,
que irá perpetuar a carga processual, em vez de criar condições para que
haja decisões mais curtas em cada processo (p. 56). Reformar a
arquitectura institucional do sistema judicial sem explicar minimamente o
que se pretende (p. 58). Proclamar abstractamente que se vai legislar
contra monopólios (p. 62). Concessionar escolas a professores sem que se
perceba as vantagens (p. 73). Criar uma comissão de reforma do IRS que
parece que apenas poderá inverter a trajectória de agravamento deste
imposto, o que pode significar apenas que o IRS não aumenta mais (p.
103). Criar um programa de simplificação administrativa tendo ainda que
verificar e avaliar procedimentos, não se sabendo quando poderá começar
semelhante programa (p. 106 e p. 107).
E é claro que não faltam propostas que fazem parte
das convicções profundas deste Governo. É o caso do cheque-ensino, do
plafonamento das contribuições para a segurança social e do aumento de
unidades de saúde privadas. O alcance destas propostas é tal que têm que ser discutidas de forma autónoma.
Em vez de estudo técnico aprofundado e com qualidade,
temos um documento que cita como fontes, entre outras, o Orçamento de
Estado para 2014, que ainda está em discussão no Parlamento, a
Secretaria de Estado da Administração Local, quem sabe se não foi uma
pessoa que passou por lá e atendeu o telefone, ou o FMI, talvez a
própria Christine Lagarde.
O guião não passa de um trabalho de casa que ninguém queria fazer e que lá se escrevinhou à pressa, no intervalo antes da aula. E, como esses trabalhos mal feitos, apenas evita uma falta do aluno, ficando rapidamente esquecido no meio da papelada.
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