Texto de Daniel Oliveira, publicado no seu blogue "Antes pelo contrário" no "Expresso".
A tomada das escadarias da Assembleia da
República transformou-se num marco simbólico para muitas manifestações. O
que já levou a momentos tensos e até violentos no Largo de São Bento,
com a polícia a defender, sem cedências, aquela linha que supostamente
divide a rua do poder. É por isso que a imagem da polícia a "conquistar"
aquelas escadaria se torna tão forte. Como podem as forças de segurança
impor aos outros os limites que elas próprias ultrapassam?
A gravidade não reside, obviamente, no facto do
corpo de intervenção não ter atuado com mais vigor para impedir aquele
desfecho. Nem me parece, nestes e noutros protestos, que a defesa duma
escadaria valha alguma cabeça partida, nem acho que, do ponto de vista
simbólico, a imagem de polícias a bater noutros polícias, como vimos nos tempos de Cavaco Silva
, fosse mais benigna para a autoridade do Estado. O problema foi mesmo
dos policias manifestantes que se terão esquecido, por umas horas, das
suas funções. Quando a polícia não cumpre os limites que a própria
polícia determina para si e para os outros, é o Estado de Direito que
está em causa, disseram muitos. No caso em apreço, talvez seja um pouco
excessivo dizer tanto. Mas reconheço que este foi um sinal que não pode
ser ignorando. Porque ele é o reflexo dum clima geral no País. Que tem
responsáveis muito fáceis de identificar.
Quando o governo exerce uma pressão sem precedentes
sobre o Tribunal Constitucional, não hesitando em procurar no exterior
aliados para esse inaceitável comportamento, começa a ser difícil falar
de respeito pelos órgãos de soberania. Quando trata a Constituição do
País como um problema a contornar e não como um limite que, por vontade
dos poderes eleitos, não pode ser ultrapassado, começa a ser difícil
falar no primado da lei. Quando o governo não cumpre os compromissos do
Estado para com os cidadãos e, de forma continuada, põe em causa a
indispensável confiança no Estado, começa a ser difícil garantir a
autoridade. Foi o governo que criou o ambiente de bandalheira
institucional que torna este comportamento, mesmo que criticável, quase
natural. Quando o poder político, por vontade ou por uma suposta
necessidade, torna difusos os limites definidos pela lei e das funções
de cada instituição, não se pode queixar quando outros lhe seguem o
exemplo.
Mas, acima de tudo, a forma como o governo trata a
generalidade dos funcionários do Estado, dos trabalhadores das empresas
públicas aos da administração pública, dos professores à polícia (de que
o corte do subsídio de fardamento é apenas um exemplo quase
caricatural) só poderia ter este resultado. Um governo não pode tratar
com desprezo aqueles que, junto dos cidadãos, representam o Estado e
achar que a sua autoridade e a autoridade do próprio Estado ficam
intactas.
O comportamento da policia na ultima quinta-feira
não é o problema. É o sintoma. Do clima de degradação institucional e
democrática que o governo tem fomentado. O primeiro-ministro afirmou, há
uns meses: "Já alguém perguntou aos mais de 900 mil desempregados do que lhes valeu a Constituição?"
Parece que para cada vez mais portugueses, incluído os que devem
garantir o cumprimento da lei, o Estado de Direito também não lhes põe
comida no prato. Se o pragmatismo quase selvagem, que ignora leis e
instituições, em nome de supostas inevitabilidades, serve ao governo
também pode servir a todos os outros.
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