Texto de Daniel Oliveira, publicado no seu blogue "Antes pelo contrário" no "Expresso".
Subitamente os
liberais esquecem-se de tudo o que aprenderam. Se há 16% de
desempregados, se dois terços deles não têm qualquer rendimento, se o
governo baixou o subsídio de desemprego e as prestações sociais, se os
salários do Estado desceram, se a lei laboral é mais flexível e a
negociação colectiva abrange menos gente, para onde pressiona toda a
realidade do mercado de trabalho, incluindo a realidade criada pelo
próprio governo? Para uma enorme pressão sobre os salários, que só não
desceram ainda mais porque a lei determina um salário mínimo. E o que
nesta realidade resultou de opções do governo tinha este objetivo:
permitir um suposto ajustamento salarial, ignorando o que a própria OIT
explica no relatório, ao mostrar como os salários portugueses se têm
afastado, desde 2000, da média europeia. Porque aumentaria uma empresa o
salário mínimo se tem dez candidatos prontos a trabalhar por menos do
que isso? Porque Pires de Lima lhes pede com jeitinho?
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
A OIT e a fase sonsa do governo
Entre o relatório da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e os vários relatórios que o FMI tem
produzido sobre Portugal não há apenas uma diferença de qualidade dos
dados utilizados, que se explica por, no segundo caso, a fonte ter sido
um governo apostado a encontrar em relatórios externos a legitimação das
suas próprias políticas. Não há apenas uma diferença da razoabilidade e
moderação das propostas apresentadas. Há uma diferença de perspectiva. O
que nos leva, antes de tudo, a concluir que, ao contrário do que nos é
dito, não estamos perante inevitabilidades económicas e financeiras, em
que de um lado está quem sabe fazer contas e do outros uns caloteiros
irresponsáveis. Estamos perante escolhas políticas que resultam de
diagnósticos e soluções diferentes.
É esta diferença que leva a que, perante a mesma realidade, a troika
tenha proposto a redução de um dos salários mínimos mais baixos da
Europa e a OIT tenha defendido o aumento desse mesmo salário mínimo.
A troika e o governo acreditam que reduzindo
drasticamente os custos de trabalho conseguem um dois em um: contrair
violentamente a economia, reduzindo o consumo interno (e para isso
acrescentaram outros inibidores de consumo, como o aumento do IVA) e as
importações. E garantirem a competitividade através de salários baixos
(apenas possíveis com a forte pressão dum desemprego elevado, duma forte
precariedade laboral e duma redução dos salários no sector público),
aumentando as exportações. Esta estratégia é, para dizer o mínimo,
arrojada e nunca foi tentada com sucesso.
Pelo contrário, a OIT defende uma solução mais
convencional e com provas dadas: aumentar os salários mais baixos,
reduzindo as desigualdades salariais e animando o mercado interno. Com
um mercado interno a crescer, reduzir o desemprego e as despesas sociais
e aumentar as receitas fiscais. Tudo o que permitiria começar a sair da
crise e, fora do sufoco, modernizar a nossa economia e vocacionar as
nossas empresas para a produção de bens transacionáveis, virados para a
exportação e com valor acrescentado (coisa que as propostas de Portas de
privatizar bens não transacionáveis como a educação e saúde contraria).
E tudo isto exige, a curto prazo, investimento. Na verdade, é um
confronto de perspetivas com bastantes semelhanças com aquele que o
Ocidente conheceu nos anos 30. Perspetivas que, no fundamental, são
inconciliáveis.
Mas o mais perturbante, neste confronto entre as propostas da troika
e da OIT, foi a forma como o governo se pretendeu desenvencilhar dele.
Mota Soares, sempre acompanhado por Cavaco Silva, garantiu que o governo
não acredita que a nossa recuperação se possa basear em salários
baixos. É pura e simplesmente mentira. E para o confirmar basta rever
com atenção as declarações de Passos Coelho ao longo dos últimos dois
anos. O que quer dizer o primeiro-ministro quando elogia o privado por
já ter feito o "ajustamento" que falta fazer ao Estado? O que quis dizer
a frase "só vamos sair desta situação empobrecendo"? O que era a
mudança na TSU se não a tentativa de reduzir salários, transferindo-os
para os patrões? E o que é a descida do IRC, mantendo o IRS altíssimo,
senão a repetição da mesma estratégia? E o que foi a subida do IVA senão
um inibidor do consumo? A estratégia de contrair a economia e aumentar
as exportações por via de um ajustamento dos rendimentos dos
trabalhadores e dos custos das empresas com salários já foi
explicitamente explicitada pela troika. E apoiada, com toda a
clareza, pelo governo. Não vale a pena mudar de discurso de cada vez que
uma instituição internacional aterra na Portela.
Mota Soares até pode dizer que, por ele, o salário mínimo subia e que é a troika que não deixa. Conhecemos mais umas tantas medidas, que, ao contrário desta, até tinham efeitos orçamentais, que a troika
exigia e ficaram pelo caminho porque entravam nos bolsos errados. A
questão é outra: é que a proposta de subir o salário mínimo não é feita
pela OIT apenas em nome da decência. Tem um propósito que é coerente com
todas medidas que são propostas, que passam, entre outras coisas, por
combater a precariedade e a saída de trabalhadores dos processos de
negociação colectiva, que funcionam, pela vulnerabilidade negocial dos
assalariados, como pressão sobre os salários.
Aquele organismo das Nações Unidas defende que uma
política pública adequada poderia criar, nos próximos dois anos, 108 mil
postos de trabalho. O que impulsionaria o PIB em mais de 2 pontos
percentuais (com efeitos imediatos em todos os indicadores que o têm
como referência) e reduziria o desemprego na mesma proporção. E, com
tudo isto, seria possível uma diminuição do rácio da dívida pública/PIB
de 5,9 pontos percentuais até 2015. Tudo isto implica menos ambição na
redução do défice a curto prazo, até por ser necessário investimento
público. O que implica que os cortes no Estado devem apenas ser feitos
em despesas inúteis ou ineficazes. O que raio tem tudo isto a ver com o
Orçamento de Estado para 2014 ou o vago guião da reforma do Estado? É o
oposto.
Mas se precisássemos de mais provas da falta da
seriedade do governo nas reações a este relatório e à proposta de
aumento do salário mínimo, bastaria ouvir as declarações de Pires de
Lima. O ministro da Economia, entusiasmado com um milagre que a Comissão
Europeia já ofuscou, apelou aos privados para aumentarem eles, sem ser
por imposição do Estado, os salários mais baixos.
Em vez de governantes passámos a ter conselheiros morais. E ainda por cima sonsos que se escondem atrás da troika
para justificar o que fizeram nos últimos dois anos com toda a
convicção. O problema é que até eles já perceberam o desastre que
provocaram. E agora apenas nos podem prometer que, com um programa
cautelar de julho, tudo vai ser diferente. E que não foi Passos Coelho
que, no dia da sua vitória eleitoral, prometeu "surpreender e ir mais
além do acordo" com a troika.
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