Quando Pedro Passos Coelho, Paulo Portas
e Cavaco Silva entraram no Mosteiro dos Jerónimos, para a missa do novo
cardeal patriarca, toda a fina flor do regime aplaudiu, entusiasmada,
os salvadores da estabilidade política. Depois da mais
desenvergonhada palhaçada, eles fizeram-se de novo amigos, trocaram
ministros e ministérios, pequenos poderes e vaidades, e impediram a pior
das tragédias: eleições. A coisa manteve-se, como se deve manter, entre
pessoas civilizadas. Porque, já se sabe, eleições obrigam a
eleitoralismo, o eleitoralismo leva ao populismo e o populismo leva a
escolhas erradas. Ou seja, as eleições são, em qualquer democracia decente, um problema a evitar. Fazem-se, quanto muito, na data marcada para manter as aparências.
A opinião mediática condicionou, através da chantagem e do medo, qualquer decisão que pudesse levar a eleições.
Tudo devia ficar como se nada tivesse acontecido. Para além da
manutenção de um governo que já ninguém respeita, todas as
possibilidades foram postas em cima da mesa: cozinhava-se um governo
qualquer, juntavam-se os três partidos responsáveis (responsabilíssimos,
como temos visto), mudava-se a liderança do PSD ou do CDS, arranjava-se
alguém que estivesse disposto a governar sem o apoio da opinião
pública, fazia-se um governo minoritário que estivesse em queda iminente
desde do dia da tomada de posse, escolhia-se um governo de Salvação
Nacional que, como é evidente, não iria salvar coisa nenhuma. Desde
que se evitasse a participação da turba, sempre muito perturbadora da
"estabilidade política" e dos mercados, tudo, por pior que fosse, seria
aceitável. Muitos dos que o defenderam não pensaram o mesmo nas
vésperas de se assinar o memorando da troika, percebendo-se que o valor
da estabilidade depende, em muitos casos, de quem tenha a maioria no
momento.
Os argumentos para a não realização de eleições foram três: a nossa credibilidade junto da troika, a nossa imagem junto dos mercados e a ausência de qualquer solução estável depois das eleições. Vou ignorar aqui, por decoro, o argumento do preço das eleições. Porque descer a este nível é conspurcar o debate político.
Quando à credibilidade junto da troika (da Alemanha), tenho uma novidade: nenhuma
solução que não passe pelo que Vítor Gaspar fez nos dois últimos anos,
com os resultados que teve para a nossa economia, tem credibilidade
junto da troika. E nem isso chega. Quando tudo se mostrar
inútil a troika dirá, como já começou a dizer, que Portugal não está a
cumprir. Penso que o guião da Grécia é suficientemente conhecido para
não termos ilusões.
A democracia nos países periféricos não tem credibilidade junto da Comissão Europeia, BCE e FMI.
Se quisermos realmente agradar-lhes suspendemos todos os atos
democráticos, incluindo as eleições, obrigamos os três partidos a
assinar um acordo inviolável e vitalício em torno de tudo o que está
decidido e extinguimos o Tribunal Constitucional e o Estado de Direito.
E, mesmo assim, será dito, no fim de tudo, que fomos nós que não fizemos
as coisas como deve ser. Porque, insisto no que escrevo há dois anos, o
objetivo deste "resgate" não é, nunca foi, salvar Portugal. É, sempre
foi, sacar o máximo possível do que devemos para depois abandonar a
carcaça na beira da estrada. A Europa é, nos dias que correm, esta
selva. E ser "credível" é aceitar morrer sem resistir.
Tudo o que façamos para resolver os nossos problemas enfurecerá a troika.
Que, como fez na semana passada com o dinheiro que virá com a 8ª
avaliação, fará a mais descarada das chantagens à mínima tentativa de
restaurar a normalidade democrática no País. Ou queremos sair desta
crise e vivemos com os riscos que isso implica ou aceitamos morrer
calados. É a escolha que temos pela frente. Uma escolha que chegou a
este limite: há quem, fora de Portugal, pense que nos pode impedir de
exercer os direitos democráticos e nós achamos normal que isso seja
sequer uma posição a ter em conta. Se a tivermos em conta seremos
obrigados a reconhecer que a existência de Portugal, como Estado
soberano, é uma anedota. E mais vale acabar de uma vez por todas com
esta Nação. Porque um País que julga que a independência não comporta enormes perigos não merece essa independência.
Quanto aos mercados, respondi na última sexta-feira
e mais nada há dizer. Basta, aliás, ver como a "tragédia económica e
financeira irrecuperável" que teríamos vivido a semana passada, deixou
de ser assunto para especialistas, comentadores e políticos para
perceber a função que realmente cumpriu a histeria que foi lançada. O
aumento dos juros da nossa dívida (que não estamos a pagar) e as
gigantescas perdas para as empresas portuguesas (que não aconteceram)
desapareceram, de um dia para o outro, do debate público. Devemos
estar a nadar em dinheiro para tamanha hecatombe já não preocupar
ninguém. Ou, mais provável, a hecatombe não aconteceu.
Quanto à solução política que sairia das próximas
eleições, só por humor negro, depois daquilo a que assistimos na semana
passada, alguém pode falar de estabilidade e credibilidade. Não há soluções política estáveis e, em simultâneo, democráticas, na atual situação social e económica. Porque
este "ajustamento" é incompatível com a democracia. Nunca houve
estabilidade política com instabilidade social. É dos livros. E nenhum governo, enquanto isto durar, terá uma esperança de vida muito longa. A
questão é saber se, dentro da instabilidade que é estrutural a esta
crise, Portugal tem quem represente um pouco melhor (mesmo que mal) os
sentimentos do País. A começar por não ter a dirigir o governo a única pessoa que ainda acredita que a loucura imposta pela troika é a saída para esta crise.
A democracia é isso mesmo: garantir, o melhor possível, a
representatividade da vontade popular. Não é um arranjo onde os cidadãos
são um "problema" que podemos ignorar.
Podemos continuar a brincar com o fogo. Podemos
continuar à procura de atalhos para adiar a clarificação política. Até
as eleições chegarem, haver um terramoto eleitoral que não deixe pedra
sobre pedra no nosso sistema partidário. Até poderia ser bom, mas acho
que os arautos da "estabilidade política" (aqueles que, como Marques
Guedes, a consideram "um valor em sim mesmo") não têm razões para se
entusiasmar com este cenário. E podemos continuar eternamente a achar
que se pode governar sem dar grande importância à opinião dos cidadãos,
meros destinatários passivos de inevitabilidades. Até ser mais
difícil encontrar um português que acredite na democracia do que um
governante que junte a coragem à competência.
Que a troika se esteja nas tintas para a viabilidade da nossa economia e da nossa democracia não me espanta. Eles não vivem aqui. Não terão de conviver com o Inferno político e social que andam a alimentar. Eles não são eleitos. Não
terão de pagar o preço dos seus disparates. Que políticos, comentadores
e jornalistas portugueses julguem que se pode levar a degradação da
democracia e das condições sociais de vida muito para lá do limite do
que é sustentável é que me espanta. Julgarão que estarão a salvo das
suas consequências? Não estão. Quando surgirem os populistas salvadores
da Pátria, prontos para "limpar" o País e "regenerar" a política, podem
esquecer a liberdade de imprensa, as eleições e a fiscalização do poder.
Quando isto acontecer, estes cúmplices da destruição da democracia, que
desprezam o que lhes permite exercer as suas funções em liberdade,
apenas estarão a colher os frutos que semearam.
As coisas vão correr bem se houver eleições? Não.
Como não vão correr bem se elas não existirem. E, em qualquer um dos
casos, haverá, com este ou com outro nome, um segundo "resgate". Basta
olhar para os números das finanças e da economia, mesmo ignorando todo o
contexto político, para o saber. A vantagem das eleições é só esta: ter
no governo alguém que, governando bem ou mal (não sei que governo sairá
do sufrágio popular), ainda represente algum português. Em democracia,
isso faz alguma diferença. Ou não?