Texto de Manuel Maria Carrilho hoje publicado no "Diário de Noticias".
"Sempre que diz
que não, agora já sabemos que é sim. Ano e meio de governação revelaram a
função eminentemente táctica da negação no estilo de governo de Pedro
Passos Coelho: foi assim com tudo, os subsídios de férias e de Natal, as
reduções de salários, as amputações de funções nucleares do Estado, o
ataque às pensões, etc.
Trata-se de um tática batida, de eficácia
bem reconhecida, que não se deve menosprezar: é a tática de avançar
mascarado, jurando sempre respeitar o que se despreza, e rejeitar o que
se venera. O resto são meros expedientes e pequenos truques, fáceis para
quem gere o poder.
Foi assim que, depois de se ter fixado
arbitrária e secretamente um valor de cortes que se pretende fazer no
Estado (os tais quatro mil milhões de euros), se inventou um tema
suficientemente vago - a refundação - que permitisse abrir caminho para o
atingir negando estar a fazê-lo, jogando assim às escondidas com os
parceiros sociais, os partidos políticos, a opinião pública, afinal com
todos os portugueses.
O tema já leva três meses de laracha, e
ainda não foi apresentada uma só proposta, uma ideia que fosse ou um
único objetivo, para lá do tal valor fetiche dos quatro mil milhões, a
que também ninguém explicou como é que se chegou. Seria útil e não
devia ser difícil!...
Claro que se prometeu um debate, um "debate
nacional" evidentemente. Mas como debater o que literalmente não existe?
Este anúncio é parte da panóplia dos truques: ao anunciar esses debates
sempre futuros sobre um projeto sem existência concreta, o que se
visava era sobretudo - como se de uma inoculação se tratasse - ir
transformando o anúncio numa decisão incontornável.
Tão
incontornável que a simples referência ao tema acabasse afinal por...
dispensar todos os debates. Foi o que aconteceu. E os que agora se
montaram à pressa são - como bem se viu ontem e anteontem no Palácio
Foz, com o fórum "Pensar o Futuro - um Estado para a Sociedade" - uns
indignos arremedos de qualquer discussão séria, que ilustram sem
equívocos a extrema degradação política, intelectual e ética a que a
conceção e a prática do debate chegaram com este governo.
O lance
decisivo da manobra foi, contudo, outro. Ele consistiu em atirar-se
para aí com um "relatório" do FMI, um relatório "muito bem feito", dizia
com uma obscena e incontida excitação o secretário de Estado que o
divulgou.
Um relatório que, todavia, das pergunta enunciadas às
respostas escondidas, das palavras escolhidas às que foram
cuidadosamente evitadas, passando pelos números grosseiramente
manipulados, se revela uma mera encomenda governamental sem qualquer
credibilidade.
Mas o relatório não é só desonesto, ele é também
medíocre. A sua mediocridade técnica é, de resto, o que mais
imediatamente revela a sua natureza política e ideológica. Pedro Passos
Coelho veio, claro, dizer que não se trata da "bíblia" do Governo... Mas
os portugueses, agora, já sabem que quando Passos diz que não, é porque
é sim!
O momento, no entanto, é propício para se perceber e dizer
algo mais, e mais importante: é que a bíblia de Passos não é só este
relatório. Independentemente do seu destino, e do que dele venha de
facto a ser adoptado, a bíblia de Passos é a de um ultraliberalismo
estruturalmente fanático.
De um ultraliberalismo que nunca
tínhamos visto em ação em Portugal, e cujas características ideológicas e
políticas infelizmente têm sido descuradas - e, isso sim, é que devia
ser objeto de um exigente debate político nacional.
A ideia,
repito, foi a de avançar mascarado. Mas este ultraliberalismo tem como
que traído Passos Coelho em todos os momentos de verdade (sobre a
constituição, o emprego, a emigração, as funções sociais, os impostos,
etc.), revelando as suas verdadeiras convicções e intenções ideológicas.
É
esta forma de liberalismo - na verdade é muito mais "ultra" do que
"neo" - que, de um modo ora mais engenhoso ora mais atamancado, tem
definido a natureza, a ação e os objetivos do atual governo.
A
sua ambição fundamental é a mercantilização integral da sociedade, num
quadro em que a competição dispensa completamente a cooperação, e em que
o mercado é afirmado e assumido como a única forma de organização
social plenamente legítima. Nada mais conta!
É aliás neste ponto
que o ultraliberalismo (F. Hayek, G. Becker etc.) se distingue do
liberalismo clássico (A. Smith, Ricardo, etc.), que visava restringir a
intervenção do Estado no mercado, distinguindo duas racionalidades, a
política e a económica.
O ultraliberalismo, pelo contrário,
defende a generalização sem quaisquer limites do modelo de mercado a
todas as áreas e a todas as atividades da sociedade. Defende também que
se faça da finança - apesar de todos os desmentidos factuais dos últimos
anos - o modelo de eficiência desse mesmo mercado. E defende ainda que
tal seja feito por um intervencionismo político e jurídico radical. É
exatamente tudo isto que, neste momento, está em curso em Portugal.
A
ideologia ultraliberal é clara: é preciso subordinar todas as
racionalidades, sejam elas a política, a social, a cultural, a
educativa, etc., a uma só e mesma racionalidade, que é a do mercado: é
esta, e só esta, a inspiração do "relatório" do FMI.
Passos Coelho
segue sem reservas este fanatismo ultraliberal, é ele que dá coerência a
todas as suas declarações, mesmo - ou sobretudo - quando o nega. O que
ele ambiciona para Portugal é pôr o Estado sob a vigilância permanente e
sob controlo constante do mercado, é governar não só para o mercado
mas, fundamentalmente, em função do que a lógica mercantil quer da
sociedade.
Nesta perspectiva, inédita em Portugal mas que é hoje
absolutamente clara no discurso do Governo, é a economia que
verdadeiramente passa a controlar e a fundar a política, impondo-lhe os
seus objetivos - e isto é que é, afinal, a "refundação".
É por
isso um erro pensar-se que o seu adversário é apenas o Estado social -
na verdade, o seu adversário é todo o Estado, o Estado tout court. Qual é
o interesse de noções como "bem comum", "bem-estar social", "interesse
geral", perguntava há já algumas décadas F. Hayek, nesse clássico do
ultraliberalismo que é "A Estrada para a Escravidão"? Nenhum,
respondia, são ideias a combater, como acontece com as de autonomia, de
contrato social, de comunidade, de soberania.
São meras ilusões
que é preciso eliminar, como tudo aquilo que valorize os sentimentos
comuns dos cidadãos ou quaisquer perspetivas unificadoras da sociedade.
"A
sociedade não existe" é o dogma central deste ultraliberalismo, para
quem só existem os indivíduos na sua pluralidade e, claro, o mercado na
sua divindade . É esta a "bíblia" de Passos Coelho."
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
A bíblia de Passos
Etiquetas:
passos coelho
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