Texto de Nuno Saraiva hoje publicado no "Diário de Notícias"
"Durante o
Estado Novo, os interrogatórios da PIDE, a polícia política do regime,
eram muitas vezes testemunhados por um "médico" que caucionava os atos
de tortura. O excelso e corajoso doutor, insensível ao sofrimento dos
interrogados, incentivava os inspetores a prosseguirem com a inquirição,
do tipo custe o que custar, assegurando sempre que o detido "aguenta,
aguenta".
As afirmações mais recentes de Fernando Ulrich, o
presidente do BPI, remetem-nos para esse tempo em que a doutrina oficial
do pensamento único impunha a filosofia dos "pobrezinhos mas
honradinhos". Na quarta-feira, dia em que apresentou os resultados
consolidados do exercício de 2012, Fernando Ulrich estava impante - e
com razão - com os lucros de 250 milhões que o banco a que preside
conseguiu arrecadar. Ficava-lhe bem, porém, um pouco de humildade que
lhe permitisse reconhecer que os números que apresentou só foram
possíveis graças à intervenção do Estado através do fundo de
recapitalização da banca, ao sacrifício dos contribuintes que ele parece
desprezar e aos depósitos de gente que, de hoje para amanhã, pode ficar
com o estatuto de sem-abrigo.
Mas o mais chocante nas palavras
do banqueiro é o paternalismo, a insensibilidade, a arrogância, a
pesporrência e a sobranceria que elas revelam. Interroga-se Ulrich: "Se
os gregos aguentam uma queda do PIB de 25%, os portugueses não
aguentariam porquê? Somo todos iguais, ou não?" E, pior do que esta
defesa despudorada e resignada do empobrecimento coletivo, é a
desumanidade demonstrada pela interrogação seguinte: "Se você andar aí
na rua, e infelizmente encontramos pessoas que são sem- -abrigo, isso
não lhe pode acontecer a si ou a mim porquê? Isso também nos pode
acontecer. E se aquelas pessoas que nós vemos ali na rua, naquela
situação a sofrer tanto, aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?"
Afirmações
deste tipo são próprias de corações empedernidos que, está bom de ver,
jamais conviveram com a realidade que nos rodeia. Quando se tem um pingo
de humanidade, e nos confrontamos com a crueldade de quem vive na rua,
sem teto, sem família e sem comida, a interrogação obrigatória não é "se
aquelas pessoas aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?", mas sim
como é que aquelas pessoas aguentam?
Fernando Ulrich, como
Isabel Jonet ou, para não ser acusado de sectarismo, Arménio Carlos, são
gente de referência nas mais diversas atividades. Têm responsabilidades
acrescidas de cada vez que abrem a boca, e têm de ter consciência das
repercussões que as suas palavras, mesmo quando mal medidas, têm na
sociedade portuguesa, sobretudo em momentos delicados como aqueles que
vivemos.
Mas Fernando Ulrich é também a voz e, num certo sentido, o
ideólogo de uma forma passadista de pensar que, cada vez mais, vai
ganhando terreno. A de que o Estado deve ser caridoso em vez de
solidário. E não, não somos todos iguais. Porque, como sabemos, no caso
dos bancos é bom que o Estado seja solidário na hora de arranjar
dinheiro, salvar as instituições e assumir os prejuízos.
Este é
só mais um exemplo de como a política e o Estado estão capturados pelo
sector financeiro. Outro tivemo-lo ontem quando da obscena tomada de
posse de um secretário de Estado - conferida por Cavaco Silva - que já
foi administrador da SLN, a holding detentora do BPN. Franquelim Alves,
que ao que consta omitiu do seu currículo esta passagem, terá
reconhecido no Parlamento durante o inquérito parlamentar à gestão do
BPN que "a situação era conhecida" e, "por razões cautelares", o Banco
de Portugal não foi informado do que se estava a passar.
São estes
personagens que, apesar de abrigados pelo Estado, passam a vida a
rogar-lhe pragas e a mal-dizê-lo. Veremos, no caso de Fernando Ulrich,
quando um dia for um "sem-abrigo" do Estado, se o banqueiro se aguenta! "
sábado, 2 de fevereiro de 2013
Já não se aguenta
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário