Texto de Fernando Santos hoje publicado no "Jornal de Noticias"
"A indignação de milhares e milhares de cidadãos polvilhou ontem ruas e
praças de dezenas de cidades portuguesas. Palavras de ordem incisivas e
cartazes tão originais quanto críticos das políticas de austeridade em
curso deram o colorido a manifestações de desagrado pelo modo como os
credores internacionais estão a impor um plano inclinado na qualidade de
vida nacional, acolitados por um governo e uma maioria parlamentar
agradecidos, obedientes - e ideologicamente identificados.
O
protesto sob o lema "Que se lixe a troika" fez a retoma da iniciativa de
15 de setembro do ano passado. Então como agora, a chamada sociedade
civil mandou às malvas o enquadramento político-partidário ou, até,
sindical - e deu asas a um sentimento genuíno de mal-estar e repulsa
pela orientação geral do país. Uma parte substancial do país já percebeu
não ter futuro, vive afetada pela pobreza e a degradação das condições
de vida dos seus próprios - ou próximos - núcleos familiares e tem,
pois, razões bastantes para pressionar a reorientação das políticas em
curso.
A virtude da existência de movimentos genuínos de protesto
não é negligenciável e, em certo ponto, é mesmo um sinal objetivo de
desapoio e desconfiança a quem dispõe da condução política do país, do
Parlamento ao Governo, mas sem ignorar também a Presidência da
República. Ontem, como em anteriores manifestações, dispondo os
contestatários de um acrescido valor: foram capazes de expressar o que
lhes vai na alma sem violência gratuita - houve meros arrufos. O
protesto civilizado, dentro de regras democráticas, bem pode mesmo
servir de fonte inspiradora a criadores de "pins" para uso (orgulhoso)
na lapela dos portugueses.
Há uma tendência natural para
estabelecer paralelismos entre o protesto de ontem e o de 15 de
setembro, inclusive pela apresentação de números. Uma tal propensão fica
entretanto condicionada por ambientes divergentes - mas de resultado
contestatário igual.
O protesto de 15 de setembro estava
alavancado pela patetice e o desastre de uma tentativa de dias antes do
Governo de anunciar a intenção de colocar os trabalhadores a
substituírem-se ao patronato no pagamento da Taxa Social Única. As
consciências abespinharam-se, incluindo a dos patrões, e o protesto foi
marcante no recuo de Passos Coelho. É certo, vingou-se mais tarde pela
apresentação de um enorme aumento de impostos, mas percebeu então a
força da rua.
Se se quiser: o protesto de ontem - agora com a
troika em Lisboa a saber se o Executivo cumpre o infernizar de vida aos
cidadãos como está programado - é uma sequela do saque fiscal iniciado
há dois meses e, por isso, dispôs de menos sangue a ferver. Mas não é
negligenciável e vai - tenhamos todos a certeza - gerar réplicas
próximas.
Só um tolo não acredita estarem "afinadas" decisões para
o famoso corte de quatro mil milhões de euros, e cujo anúncio ficou
congelado pela manifestação de ontem. Troika e Governo não são parvos,
mas estão enganados quando se acham convencidos de que a parvoíce está
alojada nos cidadãos vulgares."
domingo, 3 de março de 2013
Indignação não é parvoíce
Etiquetas:
governo,
passos coelho
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