Texto de Manuel José Manuel Pureza hoje publicado no Diário de Noticias
"Um país faz-se
de bens comuns. De processos concretos que dão um sentimento de
comunidade capaz de agregar a diversidade sem a pôr em causa. Um país
faz-se de coesão capaz de contrabalançar a heterogeneidade sem a
sufocar. E o primado da comunidade e da coesão - da coesão territorial,
da coesão social, enfim o primado do país - impõe escolhas. Num país
como Portugal, ele impõe, por exemplo, beneficiar o interior mesmo
quando a racionalidade económica não o justifique. Ou beneficiar os mais
pobres mesmo quando a ideologia dominante aponta para a sua penalização
social.
Na história dos países europeus, o serviço público de
correios foi um dos mais importantes instrumentos desse princípio de
coesão. O sentimento de comunidade que resulta de, no espaço nacional,
ser prestado a todos por igual um mesmo serviço de distribuição
domiciliária de correio (desde 1821 entre nós) ou de a todos ser
aplicada uma tarifa única independentemente da distância percorrida pela
sua carta no território nacional (criação inglesa em 1839), faz parte
desse património longamente sedimentado de edificação das nações.
Devemos aos correios públicos uma parte importante das comunidades
nacionais que somos.
Para o credo liberal que hoje governa
Portugal e a Europa, o primado da coesão pertence ao domínio da
irracionalidade e da ineficiência. Sim, quem nos governa acha mesmo que a
coesão é irracional, ou não fossem discípulos de Margaret Thatcher e do
seu célebre: "não existem sociedades, só existem indivíduos e
famílias." São apologistas do deslaçamento social e territorial e não
hesitam em destruir países para o concretizar. A sua estratégia de
privatização dos correios é exemplo maior disso.
Desde 1997 o
desmantelamento dos correios públicos fez caminho na Europa. O
argumentário é o do costume: o monopólio público é um erro (porquê?) e a
liberalização do serviço trará modernização, preços mais baixos e mais
empregos (onde é que já ouvimos isto?). Os resultados também são os do
costume: destruição dramática de postos de trabalho, encerramento em
série de postos de atendimento, deterioração geral do serviço prestado
às pessoas.
O cenário de abate dos correios públicos chegou a
Portugal pela mão do PEC IV, convém lembrar. Os seus arautos, desde
então, dizem-nos aqui o mesmo bla-bla-bla que disseram em toda a Europa.
E acrescentam que o fim dos encargos com este setor será mais um alívio
para as contas públicas e permitirá uma injeção de ambição e de
qualidade que só os privados podem dar. Dupla mistificação. Primeiro, os
CTT são uma empresa lucrativa, dão dinheiro ao Estado e ao país: 106,5
milhões de euros em 2011 e 2012, 438,7 milhões acumulados desde 2005. É
esta empresa lucrativa, com um volume de negócios anual superior a 710
milhões de euros, que se vai vender. Obviamente para dar lucro a quem a
comprar. Sobre a dita injeção de ambição e qualidade, que sirva de lição
a experiência estrangeira: na Holanda, o operador privado pretende
limitar a três dias a distribuição de correio, sob a ameaça de que "se
os políticos quiserem o correio distribuído seis dias por semana, então
terão de o financiar". A ambição e a qualidade traduzir-se-ão em
abolição de todas as prestações de serviço público que se revelem menos
lucrativas ou deficitárias. E o resultado será o fim da operação em
zonas rurais, a supressão da tarifa única e encerramentos em massa na
rede de postos de correio.
Aos que insistem em achar que lutar
contra esta privatização é um preconceito ideológico e que defendê-la é
pragmático, eu respondo: defender a privatização dos CTT é fragilizar
gravemente a coesão social e territorial do País. Conscientemente.
Deliberadamente. Querem algo mais teimosamente ideológico que isto?"
sexta-feira, 17 de maio de 2013
Ideologia postal
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