Texto de Daniel Oliveira, publicado no seu blogue "Antes pelo contrário" no "Expresso"
sexta-feira, 3 de maio de 2013
O predestinado Gaspar
"Vítor Gaspar foi ao Parlamento para mostrar aos deputados como o anterior governo endividou, com os famosos swaps,
as empresas públicas em mais de três mil milhões de euros. Só que, como
bem recordou a deputada Ana Drago, segundo um relatório do seu próprio
Ministério, em junho de 2011, as perdas ainda estariam, nessa altura,
em menos de 1500 milhões. Durante estes dois anos duplicaram. E o
ministro, apesar de saber o que se passava, nada fez.
Quando chegou ao governo, cortou em subsídios, criou
taxas e aumentou impostos. Nenhum contrato com os trabalhadores e com os
reformados, nenhum compromisso com os contribuintes, nenhuma lei da
República, incluindo a Constituição, o fez vacilar. Mas quando estavam em causa os bancos e milhares de milhões de euros, ficou dois anos a avaliar. Este mês, enquanto corria com membros do governo, deixou a sua secretária de Estado do Tesouro no lugar.
Isto apesar da Refer, de que ela era administradora executiva com a
responsabilidade pela área financeira, ter perdido 40 milhões com estes
contratos. Vantagens de ser juiz em causa própria.
Às perguntas da deputada, Vítor Gaspar começou por
se mostrar incomodado com uma "acusação": que ele fora eleito para o
lugar. "Não fui eleito coisa nenhuma", disse, não conseguindo
disfarçar o orgulho. Há uns meses, dirigindo-se aos deputados do PSD e
do CDS, terá usado, segundo sei, esta curiosa expressão: "os vossos eleitores".
Os vossos eleitores? Não saberá Gaspar que só toma as
decisões que toma porque os eleitores elegeram uma maioria que lhe dá
legitimidade para governar? Que sem ela, continuaria a ser um anónimo
assalariados do BCE? Não, não sabe. Gaspar não tem um mandato. Tem
uma missão. Não faz escolhas políticas. Toma decisões técnicas. Não tem
um programa de governo a seguir. Aplica modelos. Não depende da lei, da legitimidade do voto, da democracia. Limita-se a executar o que não se questiona, porque a dúvida não tem qualquer validade na cabeça de um fanático.
E não há pior fanático do que aquele que se julga um mero executor da
fria técnica. A história está cheia deles e dos seus sinistros legados.
Acontece que, mesmo como técnico, Gaspar foi, até agora, uma desgraça.
Quase todos os indicadores orçamentais e económicos estão muito piores
do que estavam quando ele entrou, pela primeira vez, no Ministério das
Finanças. E piores do que em todas as previsões do memorando. Bem sei
que a realidade pode ser madrasta e não reconhecer o brilhantismo do
génio. Mas a consegue ser mais fria que Gaspar. E destruiu de forma
impiedosa, em apenas dois anos, a delirante autoimagem que Gaspar levou
uma vida inteira a construir de si próprio.
Nada que atormente Gaspar. No Documento de Estratégia Orçamental volta às estimativas delirantes:
teremos, em 2017, um crescimento de 2,2% (este ano foi de -2,3%), um
desemprego de 16,7% (era, em Março, 17,5%), um défice de 0,2% (foi de
6,4% em 2012) e uma dívida de 115% (está nos 126% este ano). Com a mais
austeridade cresceremos, criaremos emprego, ajustaremos as contas
públicas sem receitas extraordinárias e reduziremos a dívida.
Ao contrário dos que se sabem políticos, Gaspar
não se atormenta com as consequências práticas e a responsabilidade
política pelos seus atos. Isso é coisa para medíocres. Porque só
medíocres dependem dos humores da turba popular. Só eles dependem dos
códigos rasteiros da democracia. Nunca passou, "coisíssima nenhuma",
pelo banho de humildade que é a conquista do voto. Nunca passou pela
humilhante prova de ver o seu trabalho avaliado por eleitores sem
qualificações académicas. É por isso que todos os ministros deviam ser,
como são no Reino Unido, eleitos deputados antes de ocupar o lugar. Não
garante gente decente e competente. Mas livra-nos, quase sempre, de
perigosos predestinados."
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