Texto de Nuno Saraiva hoje publicado no "Diário de Notícias"
"Além da questão
semântica - refundação ou reforma -, que não é de somenos, o debate em
curso à volta das funções do Estado não deixa de causar algumas
perplexidades.
Vamos por partes. Não sendo novidde para ninguém
que o Estado carece de reforma, que o redesenho da arquitetura que
conhecemos tem vindo a ser empurrado com a barriga ao longo de mais de
15 anos por todos aqueles (PSD e PS) que têm tido a responsabilidade de
governar, e que o nível de despesa pública a que chegámos é
incomportável, é também claro que a tarefa de redefinir as funções e os
serviços que o Estado presta aos contribuintes não pode ser entregue a
um grupo de capatazes do Fundo Monetário Internacional (FMI), que nada
sabem sobre as idiossincrasias nacionais.
Ao que parece, um novo
grupo de técnicos do FMI desembarcou em Lisboa a convite de Vítor Gaspar
para, juntamente com o Banco Mundial, definir as funções sociais do
Estado. Não pode haver maior prova de capitulação perante os credores e
maior confissão de incompetência por parte de um governante que se
demite, assim, de desempenhar uma das mais nobres funções para que foi
empossado: reformar o Estado.
Se todos nós temos hoje absoluta
consciência de que somos uma espécie de protetorado da troika, onde há
pouca margem para a soberania e independência económicas, aceitar este
facto, sem pestanejar, é conceder que passámos ao estatuto de território
colonizado.
Sem patriotismos ou nacionalismos serôdios, é
preciso afirmar de forma clara e inequívoca que é aos portugueses que
compete decidir que Estado querem ter e estão dispostos a pagar. E isto é
algo de que não podemos abdicar, sob pena de, um destes dias,
acordarmos e sermos confrontados com um Estado mínimo que se limita a
sacar impostos sem oferecer quaisquer contrapartidas, desenhado pelos
tais capatazes que, como a história já o demonstrou - veja-se o que
aconteceu à Argentina, ao Brasil ou agora à Grécia com as intervenções
do FMI -, não têm currículo, apenas cadastro.
Por outro lado, o
debate agora desencadeado pela inusitada forma de comunicar do atual
Governo - depois de António Borges ter publicitado as intenções do
Executivo sobre a RTP, coube agora a Marques Mendes, conselheiro de
Estado e ex-líder do PSD, anunciar, sabe Deus com que mandato, com
detalhe e minúcia o plano de cortes - revelou, mais uma vez, o desprezo
que a atual maioria tem pelas oposições. Depois de desafiar o PS para o
indispensável debate, ficámos a saber, nem 24 horas depois, que afinal a
"refundação" já estava em curso e que os seus autores são, surpresa das
surpresas, os senhores do FMI. E assim se dá cabo do indispensável
consenso político alargado para realizar a incontornável reforma. Não
podia ser maior a encenação.
Porém, a estratégia de abdicação da
responsabilidade política não é de todo surpreendente. Já no final de
agosto, António Pires de Lima, dirigente do CDS-PP, tinha defendido que a
troika devia obrigar PSD, PS e CDS a reverem a Constituição. Ora, mais
uma vez, sejamos claros: compete à sociedade portuguesa e, neste caso,
aos partidos que a representam tomar a iniciativa de rever, ou não, o
nosso enquadramento constitucional. Era só o que faltava, ainda para
mais num momento em que o Parlamento tem poderes constituintes, que
fossem agora entidades externas a tutelar uma nova redação da
Constituição da República Portuguesa.
Por fim, a questão
semântica. Refundar é diferente de reformar. Refundação foi o que
aconteceu a 5 de outubro de 1910, quando a natureza do regime se
alterou. Refundação foi o que aconteceu, também, a 28 de maio de 1926,
quando a Revolução Nacional pôs fim à I República e abriu caminho ao
Estado Novo de Salazar. Refundação, enfim, foi o que aconteceu a 25 de
abril de 1974, com a restauração da Democracia. Ora, do que nós estamos a
falar é, esperemos nós, não da passagem da Democracia à reforma mas da
reforma da Democracia. E essa é uma tarefa que nos cabe a nós, e só a
nós, os portugueses."
sábado, 3 de novembro de 2012
Reformar sim, refundar não!
Etiquetas:
governo,
passos coelho
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