Cabe ao Presidente garantir o regular funcionamento
das instituições, impedir abusos de uma maioria, fazer cumprir o
espírito e a letra da Constituição e interpretar o sentimento dos
cidadãos. Muito teria que fazer por estes dias. Porque o regular
funcionamento das instituições e a Constituição são desafiados
diariamente, porque os abusos têm sido mais do que muitos, porque a
coesão social é dinamitada, porque a economia do País é devastada,
porque o património do Estado é desbaratado e porque, como indicam todas
as sondagens, o sentimento generalizado de revolta põe em causa a
credibilidade da própria democracia.
Os poderes do Presidente não são muitos. Mas são
alguns. Uns bem práticos, outros simbólicos. Mas todos eles dependem não
apenas da existência do cargo, mas do peso político e moral do detentor
desse cargo. Com Cavaco Silva, temos três problemas de partida: o
Chefe de Estado tem medo de usar os seus poderes, é incapaz de ser
consequente com o que é evidente ser o sentimento nacional e tem enormes
fragilidades políticas e éticas.
Como tem defendido a generalidade dos constitucionalistas, a inconstitucionalidade deste orçamento de Estado
quase não é motivo de debate. Poucas leis aprovadas no Parlamento - e o
orçamento é uma lei - foram tão evidentemente inconstitucionais. E, no
entanto, ela foi promulgada e apenas será pedida a sua fiscalização sucessiva.
O que quer dizer que, quando e se for declarada a sua
inconstitucionalidade, está criado um problema grave à vida política
portuguesa. Maior do que aquele que seria criado com a sua fiscalização preventiva,
que obrigaria a maioria parlamentar a corrigir imediatamente as suas
opções orçamentais. Assistiremos a um episódio semelhante ao do
Orçamento anterior. A declaração de inconstitucionalidade acabará por
ser usada como argumento para agravar ainda mais algumas medidas. Porque
o Presidente não teve a coragem de assumir as responsabilidades do cargo que ocupa.
Mas o problema é ainda maior. Pela primeira vez,
desde que elegemos diretamente o Presidente da República, este é,
segundo todos os estudos de opinião, um dos agentes políticos mais impopulares do País.
Mais do que todos os líderes dos partidos da oposição e do que o líder
do segundo partido do governo. Pior do que ele, só mesmo
primeiro-ministro. E isto retira-lhe quase todo o espaço de manobra.
O momento em que a fragilidade do Presidente passou a ser evidente foi quando Cavaco Silva fez as tristes declarações que fez sobre as suas reformas.
Pedro Passos Coelho tem consciência disto. E usou a fragilidade do
Presidente. Ontem, para se referir à provável inconstitucionalidade da
lei do orçamento, decidiu concentrar-se nas reformas mais altas,
como se fosse este o assunto fundamental em debate. Não vou aqui
discutir as falsidades e absurdos que disse, que apenas tornam mais
evidente a sua profunda ignorância sobre quase tudo o que envolva
políticas de Estado, incluindo o funcionamento da nossa segurança
social. Fico-me pela questão política. Marcelo Rebelo de Sousa notou que
se tratava de uma "canelada" em Cavaco Silva. E foi disso mesmo que se tratou.
Na verdade, as declarações de Cavaco sobre as suas reformas tornaram evidente a sua incapacidade de compreender os sentimentos mais profundos dos portugueses.
E um Presidente com esta limitação pode ter todos os poderes que nunca
os usará com eficácia. Apesar da imagem de homem simples que vem do
povo, Cavaco está, como se viu então, a léguas da realidade nacional. E
falta-lhe a argúcia política para a conseguir interpretar realidades que
lhe sejam distantes. E falta-lhe a autoridade política e moral que o
cargo, pelas suas características, exige. Está, por isso, vulnerável a
qualquer ataque que venha do governo. E um Presidente vulnerável aos ataques de quem deve fiscalizar é uma inutilidade.
Na verdade, apesar de todas as minhas dúvidas em
relação ao sistema semipresidencial, nunca as condições políticas foram
tão favoráveis a que elas se dissipassem. E nunca o político que ocupou o
lugar foi tão desadequado para cumprir esse papel. Vivemos, na
política portuguesa, uma tempestade perfeita. No governo, no maior
partido da oposição e na Presidência da República estão os homens
errados no pior dos momentos. Como dois deles foram eleitos por nós, só nós próprios podemos ser responsabilizados por este erro de casting."
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